domingo, 12 de dezembro de 2010

Remando contra a maré

http://Twitter.com/GildaQueiroz

Sempre tive implicância com as multas em bibliotecas. Todos argumentam que elas são universais, ou pelo menos que existem em todo o mundo ocidental. É, pode ser, mas trazem às bibliotecas estigma de intransigência. E o que multas por atraso de entrega de material têm a ver com marketing? Tem tudo a ver, porque a criação de alternativas para atender aos desejos do cliente é parte integrante do marketing. Tem a ver, também, porque as multas são o principal fator de desagrado gerado por bibliotecas em seu público, o que afeta negativamente nossa imagem como coletivo. E imagem também é objeto do estudo de marketing.

Tive uma experiência de poucos anos em trabalho em bibliotecas. Onde atuei não havia multas e nunca tive problemas de devolução de livros. Então me vêm em seguida com o argumento de que meu público era especial, porque a biblioteca era fechada aos empregados da indústria, que eles passavam por revista na portaria e tinham que dar conta do que estivessem devendo, antes de seu desligamento da empresa. Estes fatores podem ter sido fatores inibidores de desvio de material, mas a verdade é que nunca ninguém foi surpreendido com livros levados indevidamente. Prefiro creditar o alto índice de adesão à flexibilidade do sistema de empréstimos existente. Olhando retrospectivamente, vejo alguns aspectos que embora não tenham sido implantados intencionalmente, levaram aos bons resultados:
- o usuário dizia quanto tempo queria ficar com o livro – duas semanas, dois meses, o que fosse;
- havia “empréstimo permanente” para alguns itens de interesse de um só setor;
- o conteúdo da cobrança era amigável.
- as cobranças só eram efetuadas depois de passado muito tempo do prazo de entrega;

Em consequencia deste último ítem, especialmente, o baixo esforço despendido em renovações e cobranças era um subproduto valioso desta forma de trabalhar. Ficava mais fácil lidar apenas com desvios, com pontos fora da curva.
Como em qualquer outra atividade humana, acaba-se observando um comportamento padrão para o conjunto dos usuários. Os atrasos se concentram, naturalmente, em volta de determinados períodos, seja qual for o número de dias que se estabeleça como prazo de devolução. E, porque o sistema oferecido era tão tolerante, nunca vi uma cara feia, nunca ouvi comentários desagradáveis de quem recebia cobranças.

Voltando então à questão de criação de ofertas de acordo com os desejos do cliente. Por que ter as mesmas regras draconianas para todos os usuários e para todos os livros, vídeos, DVDs da biblioteca? Por que não criar alternativas para o cliente segundo seu comportamento e, por outro lado, alternativas para o material segundo seu nível de demanda?

Queiram ou não queiram, as bibliotecas estão submetidas às tendências gerais de mercado, que oferecem cada vez mais soluções individualizadas. Empresas de telefonia móvel, de seguros, bancos, enfim todos que atuam no setor de serviços há muito tempo oferecem opções variadas a cada segmento - por exemplo, clientes que concentram todos os seus investimentos no banco, aposentados, mulheres que dirigem com prudência. Nas bibliotecas também podíamos pensar em algo assim, não acham?

Claro, quase todas as bibliotecas já emprestam,no fim de semana, o material de referência ou os livros para consulta local– mas aí, em geral, termina a flexibilidade. Por que não estabelecer a priori uma regra que possibilite prazos maiores de empréstimo para material com demanda menor? Se um livro não foi emprestado por meses, pode sair também por meses. Se antes do prazo de vencimento houver procura, faz-se a reserva e pede-se a devolução. Olhem de que desgaste não se poupa a equipe, que do contrário tem de fazer renovação atrás de renovação!

Já estou escutando os protestos – “Ah, mas nós temos uns livros que têm grande demanda e temos só uns poucos exemplares e os usuários não podem ficar com eles assim... E eles usam de todos os recursos para se atrasarem blá blá blá”. Vamos imaginar o seguinte cenário - Na regra geral o prazo de empréstimo é de 1 mês. Os livros de menor demanda podem ser levados por prazos de até 3 meses, MAS os livros de tarja vermelha só podem ficar com o usuário por 5 dias, ou algo assim. Se a regra de 80/20 funcionar neste cenário, 80% da demanda vai recair sobre 20% da coleção. Mesmo assim, aí é que entra o aspecto psicológico do sistema flexível pois o usuário que levar um livro tarja vermelha para casa vai se considerar menos pressionado, porque a regra geral diz que o prazo para os demais livros é de um mês.

Agora vamos analisar o comportamento dos usuários? Todos atrasam. Mas por quanto tempo atrasam? Principalmente, qual o impacto sobre os demais usuários, se um deles se atrasar na entrega? Pois, acho que usuários também podem ser enquadrados em níveis, de acordo com sua pontualidade. Para os mais disciplinados, pontos a acumular que eles poderiam usar para “pagar” eventuais atrasos, como depois de um feriado ou uns dias de férias. Para os relapsos, perda de pontos. Por fim, só deveríamos castigar aquele que, depois de advertido, ainda reincidisse no erro. Assim, pois, multas só para os faltosos contumazes. O objetivo final deve ser punir os relapsos, permitindo que os demais usuários até esqueçam que estas punições existem. Comparando, ainda, com outro setor de serviço de interesse social, lembro que a luz só é cortada após 15 dias do aviso de falta de pagamento, depois de um mês do vencimento da conta.

Bom, o óbvio tem que ser repetido. Acho que cartas de cobrança só deveriam sair depois do tempo padrão de atraso, como disse anteriormente. Quantos dias, 15, 20? Não sei, este tempo seria fácil de aferir depois de uns seis meses de implantado o sistema flexível.

Quando, depois de usada a tolerância nas outras regras, chegar-se finalmente à necessidade de punição, ainda assim, podemos usar flexibilidade para diminuir o impacto negativo. Várias bibliotecas têm usado alternativas para as dívidas, como suspensão de empréstimos.
Temos sempre que ter em mente o motivo pelo qual a biblioteca existe. Aqui peço emprestado um trecho de Ronaldo Torres 1: “Se a unidade de informação fosse utilizada como recurso para transpor os limites de sua comunidade usuária, não hesitaria em dizer que a biblioteca desenvolveria um papel importante na construção dos saberes e do desenvolvimento socio-interacionista. E por outro lado não arrastaria como obrigação sem propósito alguns limites disciplinadores como as multas e as suspensões mas que ao mesmo tempo são tão importantes para a existência da biblioteca como: a devolução dos materiais, a conservação dos mesmos e do espaço e o respeito aos outros usuários e aos funcionários.”


Vamos ter em vista que o mais importante é que a coleção seja usada, que os livros e outros materiais saiam das prateleiras e gavetas e ganhem leitores. Perdas são inevitáveis, mantidas margens toleráveis. Essencial mesmo é ver custo-benefício em tempo, esforço e dinheiro empregados para evitar que algum item se extravie.

Tudo bobagem, tolice, como dirão alguns. Afinal minha experiência direta com bibliotecas foi tão pequena... Foi, minha experiência direta foi pequena. Mas nada me impediu de observar meu entorno e ver que os relapsos são os primeiros a denegrirem a imagem da biblioteca, como instituição autoritária.

Mas, mesmo quem concordar que implantar um sistema flexível é boa idéia, não me venha dizer que isto tudo é impossível. As bibliotecas com grande movimento têm serviços automatizados de empréstimos. Em informática tudo se pode, é questão de vontade. E acúmulo de pontos é assunto dominado pelos analistas – só não implementariam esta função no sistema por preguiça ou por incapacidade técnica. E nas bibliotecas pequenas, este controle, mesmo manual, seria muito mais fácil do que enviar cartinhas de cobrança.

Bem, ainda temos outra opção para nos livrarmos da ira dos usuários com as multas, que é esperar o ocaso total de livros em papel e outros suportes físicos. Daqui a cinco, dez, quantos anos mais? O tempo dirá.



BIBLIOGRAFIA

1. Ronaldo Torres
http://bibliosimples.blogspot.com/2010/11/limite-na-biblioteca-pratica.html


MAIS NA INTERNET
Ao fazer uma pesquisa rápida no Google percebi que o assunto “multas em bibliotecas” anda sendo discutido em todo o país e mundo afora. Há páginas e páginas, e aí vão algumas referências, pinçadas aleatoriamente. Todos os sites foram acessados entre 2 e 4 de novembro de 2010.


1. Adelaida. Publicado el 23 Agosto, 2010
Sobre las multas y otros incentivos
http://librolibertate.wordpress.com/2010/08/23/sobre-las-multas-y-otros-incentivos/
Não deixe de ler este “post” O cartoon é imperdível

2. 17 de novembro de 2010, postado por Vivian Gombi - 4º ano de Filosofia UEM
http://movimenteseuem.blogspot.com/2010/11/polemica-do-valor-da-multa-da.html
Os alunos não têm opinião unânime

3. Rejane Gontow, que também cita Briquet de Lemos
http://listas.ibict.br/pipermail/bib_virtual/2004-December/000772.html

4. Cobrança de multa nas bibliotecas da UFPR causa polêmica
http://www.jornalcomunicacao.ufpr.br/node/6122

5. UNESP
http://www.comunesp.com/economia/o-que-se-faz-com-a-multa-de-biblioteca/

6. SP, Belas Artes - Quitando dívidas com bonbons, balas
http://www.belasartes.br/bablog/acontece-ba/quite-sua-multa-na-biblioteca

7. Semana da multa solidária/ Sistema de bibliotecas da Universidade Guarulhos
http://www.ung.br/popup/semana_multa_solidaria/regulamento.pdf

Um comentário:

  1. Pois é. Soube que recentemente nos EUA uma usuária teve que pagar uma fianca para ser solta. Isto porque nao pode devolver os livros tomados emprestados porque sua casa havia sido incendiada. Onde a sensibilidade da bibliotecária para procurar saber antes os motivos da impossibilidade da devolucao, antes de levá'la a juizo...
    Jane

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